Skip to main content
Embora a conduta seja aparentemente lícita, ela se torna ilícita pelo desvio de finalidade no seu exercício, gerando a obrigação de indenizar os danos causados. Trata-se de um limite funcional imposto ao exercício dos direitos para garantir a justiça e a harmonia nas relações sociais.

Fundamentação Legal:

  • Código Civil - Art. 187 (Conceito de abuso de direito)
  • Código Civil - Art. 186 (Para contextualização do ato ilícito em sentido estrito)
  • Código Civil - Art. 927 (Obrigação de indenizar)
  • Constituição Federal - Art. 5º, XXIII e Art. 170, III (Princípio da Função Social)

Desenvolvimento Teórico:

Esta seção aprofunda o conceito, a natureza e as consequências do abuso de direito no sistema jurídico brasileiro.

1. Requisitos e Natureza Jurídica

O abuso de direito, previsto no Art. 187 do Código Civil, é uma categoria autônoma de ato ilícito. Sua configuração não depende da intenção de prejudicar (dolo) ou da falta de cuidado (culpa), pois a teoria adotada no Brasil é a objetiva. A análise se concentra no resultado do ato e em sua conformidade com os valores do ordenamento. Os requisitos para sua configuração são:
  1. A titularidade de um direito: O agente deve possuir um direito subjetivo que lhe permita agir.
  2. O exercício desse direito: O agente pratica uma conduta amparada, em tese, por esse direito.
  3. O excesso manifesto: O exercício ultrapassa os limites impostos por três parâmetros normativos:
    • Fim Social ou Econômico: Todo direito possui uma finalidade para a qual foi criado. Exercê-lo de modo a desvirtuar essa função (ex: cobrar uma dívida de forma vexatória) constitui abuso.
    • Boa-fé Objetiva: Viola o padrão de conduta leal e honesta esperado nas relações jurídicas. Manifesta-se em figuras como a supressio (perda de um direito pelo seu não exercício por tempo suficiente para gerar na outra parte a expectativa de que não seria mais exercido) ou o venire contra factum proprium (proibição do comportamento contraditório).
    • Bons Costumes: Refere-se à violação de padrões morais e éticos da coletividade.

2. Características Principais

A principal característica que distingue o abuso de direito (Art. 187) do ato ilícito em sentido estrito (Art. 186) é o ponto de partida da conduta.
  • No ato ilícito do Art. 186, o agente viola um dever legal desde o início (ex: dirigir em alta velocidade e causar um acidente). A conduta já nasce ilícita.
  • No abuso de direito do Art. 187, o agente parte de uma posição jurídica lícita (um direito que ele possui), mas o modo de exercício torna a conduta ilícita.
Por ser formulado com termos abertos como “boa-fé” e “fim social”, o Art. 187 é considerado uma cláusula geral, conferindo ao juiz o poder-dever de adequar a norma ao caso concreto, promovendo a justiça e coibindo o exercício egoísta e anti-social dos direitos.

3. Consequências do Abuso de Direito

Uma vez reconhecido o abuso, suas consequências podem ser:
  • Obrigação de Indenizar: É a consequência mais comum. O titular que abusou de seu direito fica obrigado a reparar os danos materiais e morais causados a outrem (Art. 927 do CC).
  • Ineficácia do Ato: O ato abusivo pode ser considerado nulo ou ineficaz, retornando as partes ao estado anterior.
  • Imposição de Obrigação de Fazer ou Não Fazer: O juiz pode determinar que o ofensor cesse a prática abusiva ou desfaça seus efeitos.

Jurisprudência Relevante:

  • Abuso do Direito de Ação e Defesa: Ocorre quando a parte utiliza o processo de forma temerária, com o intuito de prejudicar a parte contrária ou de retardar o andamento do feito. O ajuizamento de sucessivas ações ou recursos infundados é um exemplo clássico.
    • STJ — REsp 1817845 — Publicado em 17/10/2019: Neste caso, o STJ reconheceu o abuso do direito de ação e defesa pelo ajuizamento sucessivo de ações temerárias com propósito doloso, considerando tal conduta um ato ilícito passível de reparação por danos materiais e morais.
  • Relações Contratuais: O abuso de direito é frequentemente associado à violação do princípio da boa-fé objetiva e seus deveres anexos (lealdade, informação, cooperação).
    • STJ — REsp 2030882 — Publicado em 15/08/2024: O Tribunal entendeu que a utilização de um critério de reajuste contratual mais gravoso, sem aviso prévio, caracteriza exercício abusivo de um direito, violando a boa-fé.
    • STJ — AgInt no AREsp 2183337 — Publicado em 06/03/2024: A resilição de um contrato dias após sua prorrogação foi considerada um comportamento contraditório que feriu a boa-fé objetiva, configurando abuso de direito.
    • STJ — REsp 1277762 — Publicado em 13/08/2013: O encerramento unilateral e imotivado de uma conta-corrente antiga e com movimentação regular foi considerado uma prática abusiva, em violação ao Código de Defesa do Consumidor.
  • Direito de Propriedade: O exercício do direito de propriedade também pode ser abusivo quando exercido em desconformidade com sua função social e a boa-fé.
    • STJ — REsp 1200112 — Publicado em 21/08/2012: A Corte afastou a proteção da impenhorabilidade do bem de família quando o proprietário, agindo com má-fé, o ofereceu em garantia para obter um benefício fiscal, configurando abuso do direito de propriedade.

Verbetes Relacionados:

  • Ato ilícito
  • Boa-fé objetiva
  • Responsabilidade civil
  • Função social do contrato
  • Direito subjetivo

Fontes e Bibliografia:

  • CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. Editora Atlas, 2023.
  • TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume Único. Editora Método, 2023.
  • SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo. Saraiva Jur, 2022.