Ação penal pública condicionada
AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA. É uma modalidade de ação penal na qual a titularidade para promover a acusação criminal continua sendo do Estado, exercida pelo Ministério Público, mas o início da persecução penal está subordinado a uma manifestação de vontade da vítima ou de seu representante legal. A condição mais comum é a representação do ofendido, uma autorização para que o Estado possa agir. Sem o cumprimento dessa condição, o Ministério Público não pode oferecer a denúncia, sendo um instituto intermediário entre a regra da ação pública incondicionada e a exceção da ação privada.
Fundamentação legal
As regras sobre esta modalidade de ação penal estão dispersas entre o Código Penal e o Código de Processo Penal.
Código de Processo Penal
- Art. 24 (Define a ação pública condicionada).
- Art. 25 (Dispõe sobre a retratabilidade da representação).
- Art. 38 (Estabelece o prazo decadencial de 6 meses para a representação).
Código Penal
- Art. 100, § 1º (Estabelece que a ação pública depende de representação ou de requisição do Ministro da Justiça, quando a lei expressamente o exigir).
Exemplos de crimes
- Art. 147, Parágrafo único (Crime de Ameaça).
- Art. 171, § 5º (Crime de Estelionato, como regra geral, alterado pela Lei 13.964/19).
- Art. 147-A, § 3º (Crime de Perseguição ou Stalking).
Desenvolvimento teórico
O ordenamento jurídico brasileiro adota, como regra, o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública. Contudo, para certos crimes, o legislador entendeu que o interesse da vítima em preservar sua intimidade ou evitar o escândalo do processo (strepitus judicii) poderia ser mais relevante que o interesse público na punição imediata, criando assim a ação penal pública condicionada.
Espécies de ação penal
É fundamental distinguir as três modalidades de ação penal:
Ação penal pública incondicionada
É a regra. O Ministério Público deve agir de ofício, independentemente da vontade da vítima (ex: homicídio, roubo).
Ação penal pública condicionada
O Ministério Público só pode agir se houver a manifestação da vítima (representação) ou do Ministro da Justiça (requisição).
Ação penal privada
É a exceção. A titularidade da ação é do próprio ofendido, que deve contratar um advogado para oferecer a queixa-crime (ex: crimes contra a honra).
Condições de procedibilidade
A "condição" a que a lei se refere é uma condição de procedibilidade, ou seja, um requisito sem o qual o processo não pode validamente iniciar.
Representação do ofendido
É a condição mais comum. Trata-se de uma autorização, uma manifestação de vontade inequívoca da vítima (ou de seu representante legal) de que deseja ver o autor do fato processado criminalmente. Não exige formalidades rígidas.
Requisição do Ministro da Justiça
É uma condição rara, de natureza política, exigida em crimes específicos, como em crimes cometidos por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil (Art. 7º, § 3º, 'b', do CP).
Características da representação
A opção legislativa pela ação condicionada busca harmonizar o interesse público na persecução penal com o interesse privado da vítima. Em crimes como a ameaça ou o estelionato, muitas vezes as partes podem chegar a uma composição ou a vítima pode simplesmente não desejar levar o conflito adiante, e a lei lhe confere esse poder de decisão inicial.
Prazo decadencial
A vítima tem o prazo de 6 (seis) meses para oferecer a representação, contados a partir do dia em que descobre a autoria do crime (Art. 38 do CPP). Este prazo é fatal, não se suspende nem se interrompe. A perda do prazo gera a extinção da punibilidade do agente.
Retratabilidade
A vítima pode se arrepender e retirar a representação. Essa retratação, contudo, só é válida se for feita antes do oferecimento da denúncia pelo Ministério Público. Após a denúncia, a representação torna-se irretratável e o Estado assume o controle total da ação (Art. 25 do CPP).
Informalidade
A representação não exige um documento com este título. A manifestação clara da vítima no boletim de ocorrência ou em seu depoimento na delegacia de que deseja ver o autor processado já é suficiente.
Jurisprudência relevante
Natureza e formalidade da representação
A representação é uma condição de procedibilidade, ou seja, uma manifestação de vontade da vítima (ou de seu representante legal) autorizando o Ministério Público a iniciar a ação penal. O STJ possui entendimento pacífico de que este ato não exige formalidades específicas.
Manifestação inequívoca
É suficiente que a vítima demonstre claramente o seu interesse na persecução penal. Essa manifestação pode ocorrer em qualquer fase da investigação, seja na delegacia, ao registrar um boletim de ocorrência, ou perante o Ministério Público e o juiz.
- AgRg no AgRg no AREsp 2517074: O STJ entende que o registro do boletim de ocorrência e a ratificação dos fatos em audiência são suficientes para caracterizar a vontade da vítima, não havendo necessidade de um documento formal intitulado "representação".
- EDcl no AgRg nos EDcl no AREsp 2026506: Da mesma forma, o STJ já decidiu que a representação pode ser depreendida do boletim de ocorrência e do depoimento em juízo.
Crimes contra a dignidade sexual
A natureza da ação penal para crimes sexuais sofreu importantes alterações legislativas, e a jurisprudência acompanhou essas mudanças.
- Regra Geral (Pós-Lei nº 13.718/2018): A Lei nº 13.718/2018 tornou a ação penal pública incondicionada para todos os crimes contra a dignidade sexual. Isso significa que, para fatos ocorridos após a vigência da lei, a ação penal será iniciada pelo Ministério Público independentemente da vontade da vítima.
- Período Anterior à Lei nº 13.718/2018: Antes da alteração, a regra era a ação penal pública condicionada à representação. Havia, no entanto, exceções importantes:
Vítima vulnerável
O STJ já entendia que, em casos de crimes sexuais contra vulneráveis, a ação penal era pública incondicionada, mesmo antes das leis mais recentes, em respeito ao princípio da proteção integral.
- AgRg nos EAREsp 2127623: Conforme o STJ, a legitimidade do Ministério Público para propor ação penal pública incondicionada em casos de estupro de vulnerável é reconhecida mesmo antes da Lei nº 12.015/2009.
Vulnerabilidade temporária
Em situações de vulnerabilidade transitória (como embriaguez ou hipnose), o STJ firmou o entendimento de que a ação penal era condicionada à representação, pois, uma vez cessada a vulnerabilidade, a vítima, maior e capaz, teria o direito de decidir sobre a persecução penal.
- AgRg no HC 753124: Para os casos de vulnerabilidade temporária, a ação penal por crimes sexuais deve ser pública condicionada à representação, respeitando o direito à privacidade e à intimidade da vítima maior e capaz.
- RHC 148695: Em casos de vulnerabilidade temporária (ex: embriaguez), em que a vítima recupera sua capacidade de decidir, a ação penal para crimes sexuais (antes da Lei nº 13.718/2018) era pública condicionada à representação.
Lesão corporal leve e vias de fato no âmbito doméstico
Para os crimes de lesão corporal leve e a contravenção penal de vias de fato, a natureza da ação penal depende do contexto em que o crime foi praticado.
Contexto de violência doméstica (Lei Maria da Penha)
O Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da ADI 4.424/DF, firmou o entendimento de que, nos crimes de lesão corporal (ainda que leve ou culposa) praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas, a ação penal é pública incondicionada. O STJ alinhou-se integralmente à decisão do STF, aplicando o mesmo raciocínio para a contravenção de vias de fato.
- EDcl no AgRg no AREsp 454105: O crime de lesão corporal, mesmo que leve, praticado contra a mulher em âmbito doméstico, é processado mediante ação penal pública incondicionada.
- AgRg no HC 713415: Seja em caso de lesão corporal leve ou de vias de fato, se praticado em contexto de violência doméstica ou familiar, não se exige a representação da vítima para a persecução penal.
Fora do contexto de violência doméstica
Para o crime de lesão corporal leve ou culposa que não ocorre no âmbito da Lei Maria da Penha, a regra geral do artigo 88 da Lei nº 9.099/95 prevalece, sendo a ação penal pública condicionada à representação da vítima.
- RHC 33478: Uma exceção notável é o crime de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor cometido por agente sob a influência de álcool, que, por força do Código de Trânsito Brasileiro, é de ação penal pública incondicionada.
Ver também
Referências
- LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 10ª ed. Juspodivm, 2022.
- LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 19ª ed. Saraiva, 2022.
- NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Processual Penal. 19ª ed. Forense, 2022.
- GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral, Volume I. 24ª ed. Impetus, 2022.