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Ação penal privada

De Edpo Augusto Ferreira Macedo

AÇÃO PENAL PRIVADA. É a modalidade excepcional de persecução criminal na qual a lei transfere a titularidade do direito de acusar do Estado para a própria vítima (o ofendido) ou seu representante legal. Nesse modelo, o Ministério Público não atua como autor, e o processo só se inicia se a vítima, chamada de querelante, manifestar sua vontade por meio de uma peça acusatória denominada queixa-crime, apresentada por um advogado. A ação penal privada é regida por princípios próprios, como o da oportunidade e o da disponibilidade, que conferem ao particular o controle sobre o início e a continuidade do processo.

As regras sobre a ação penal privada estão previstas na Constituição Federal (em sua modalidade subsidiária) e, principalmente, no Código Penal e no Código de Processo Penal.

Constituição Federal

  • Art. 5º, LIX (Assegura a ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal - Ação Penal Privada Subsidiária da Pública).

Código Penal

  • Art. 100, §§ 2º, 3º e 4º (Define a ação privada, a personalíssima e a subsidiária).

Exemplos de crimes

  • Arts. 138, 139 e 140 (Crimes contra a honra: calúnia, difamação e injúria, como regra).
  • Art. 163, parágrafo único, IV (Crime de dano cometido por motivo egoístico ou com prejuízo considerável para a vítima).

Código de Processo Penal

  • Arts. 29 a 62 (Regulam o exercício da ação privada, a queixa-crime e as causas de extinção da punibilidade próprias deste instituto).

Desenvolvimento teórico

A ação penal privada é uma exceção ao princípio da oficialidade, sendo reservada pela lei para infrações que, embora criminosas, atingem de forma mais direta a esfera íntima e particular do ofendido do que a coletividade.

Princípios reitores

Os princípios da ação penal privada são, em geral, opostos aos da ação penal pública:

Princípio da oportunidade ou conveniência

O ofendido tem a faculdade, e não o dever, de iniciar o processo. Ele pode ponderar a conveniência de levar a acusação adiante.

Princípio da disponibilidade

O querelante pode dispor da ação a qualquer momento, mesmo após iniciada. Isso se manifesta através do perdão do ofendido ou da perempção.

Princípio da indivisibilidade

A queixa-crime deve ser oferecida contra todos os coautores do crime conhecidos pelo querelante. A escolha de processar apenas um, omitindo os demais, implica em renúncia ao direito de queixa em relação a todos (Art. 48 do CPP).

Espécies

Ação Penal Privada Exclusiva (ou Propriamente Dita)

É a regra. A titularidade é do ofendido ou, em caso de sua morte ou ausência, de seu cônjuge, ascendente, descendente ou irmão (o CADI - Art. 31 do CPP).

Ação Penal Privada Personalíssima

É raríssima e não admite sucessão processual. Apenas a própria vítima pode intentá-la. O único exemplo vigente no Código Penal é o crime de induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento para o casamento (Art. 236 do CP).

Ação Penal Privada Subsidiária da Pública

Prevista na Constituição, é uma garantia do cidadão contra a inércia do Ministério Público. Se o MP não oferecer a denúncia no prazo legal, a vítima ganha o direito de iniciar a ação através de queixa-crime. Nesta modalidade, o MP atua como fiscal da lei e pode, a qualquer momento, retomar a titularidade da ação.

Sujeitos e peça processual

Querelante

É o autor da ação (a vítima).

Querelado

É o réu da ação.

Queixa-Crime

É a petição inicial da ação penal privada, que deve ser elaborada por um advogado e conter os mesmos requisitos da denúncia.

Causas de extinção da punibilidade próprias

Além das causas gerais, a ação penal privada possui formas específicas de extinção da punibilidade:

Renúncia

Ocorre antes de iniciada a ação. É a manifestação (expressa ou tácita) do ofendido de que não exercerá seu direito de queixa.

Perdão do ofendido

Ocorre depois de iniciada a ação. O querelante perdoa o querelado. O perdão, para ser eficaz, precisa ser aceito pelo querelado.

Perempção

É uma sanção pela inércia do querelante no curso do processo. Ocorre, por exemplo, quando ele deixa de promover o andamento do feito por 30 dias seguidos.

Jurisprudência relevante

Procuração com poderes especiais

A procuração outorgada ao advogado deve conter poderes especiais, com menção ao fato criminoso, conforme o art. 44 do Código de Processo Penal (CPP). No entanto, a jurisprudência flexibiliza essa exigência.

  • AgRg no RHC 167802: O STJ entende que não é necessária uma descrição pormenorizada do fato, bastando a indicação do dispositivo legal ou do nome do crime.
  • HC 247135: O STF, por sua vez, já decidiu que, embora a procuração não precise detalhar o fato, deve ao menos individualizar o evento delituoso para resguardar o querelante de uma futura acusação de denunciação caluniosa.
  • HC 246141: Irregularidades na procuração podem ser sanadas. O STF considerou o vício sanado pela presença da querelante em audiência, na qual manifestou interesse no prosseguimento da ação dentro do prazo decadencial.

Descrição dos fatos

A queixa-crime deve narrar os fatos de forma clara, permitindo o exercício da ampla defesa.

  • APn 1028: O STJ já rejeitou a alegação de inépcia quando a inicial descreve suficientemente a conduta, as circunstâncias de tempo e lugar, e a qualificação do acusado.

Extinção da punibilidade

Dois institutos são frequentemente discutidos como causas de extinção da punibilidade em ações penais privadas: a decadência e a perempção.

Decadência e perempção

  • AgR Pet 6594: O prazo decadencial de seis meses para o exercício da ação penal privada é de natureza fatal, não admitindo suspensão ou interrupção. A propositura da queixa-crime fora desse prazo leva à extinção da punibilidade.
  • AgRg no REsp 1670607: A perempção ocorre quando o querelante demonstra desinteresse no prosseguimento do feito. O STJ já decidiu que a ausência do querelante ou de seu advogado na sessão de julgamento em que a queixa-crime é recebida não configura perempção, pois esta não pode ocorrer antes do recebimento da inicial acusatória.

Ação penal privada subsidiária da pública

Esta modalidade de ação só é cabível em caso de inércia do Ministério Público.

  • QC 13: O STJ firmou a tese de que a ação penal privada subsidiária da pública é incabível na ausência de inércia do Ministério Público. A mera discordância do ofendido quanto à tipificação dos fatos dada pelo órgão ministerial não autoriza a propositura de queixa-crime.

Justa causa e animus específico

Para o recebimento da queixa-crime, especialmente nos crimes contra a honra, é fundamental a demonstração do dolo específico de ofender (animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi).

Ausência de fato certo e determinado

Para os crimes de calúnia e difamação, a jurisprudência exige a imputação de um fato concreto e determinado. Críticas genéricas ou vagas não configuram o delito.

  • QC 2: O STJ rejeitou queixa-crime por difamação por entender que a expressão utilizada não configurava a atribuição de um fato ocorrido em determinada circunstância de tempo e lugar.
  • AgR Pet 7168: Da mesma forma, o STF entende que opiniões ou conceitos genéricos, ainda que ofensivos, não caracterizam difamação ou injúria puníveis quando não se revela a quem são dirigidos.

Ausência de dolo específico

A intenção de ofender é um requisito subjetivo do tipo. Se a manifestação ocorre com outra intenção (animus criticandi, narrandi, jocandi), a conduta é considerada atípica.

  • APn 990: O STJ já rejeitou denúncia por calúnia ao concluir que as declarações do acusado se coadunavam muito mais com a intenção de criticar (animus criticandi) do que com a de ofender a honra.

Transação penal e composição civil

  • 5296850-57.2024.8.09.0106: O TJ-GO, em linha com o Enunciado 112 do FONAJE, reconheceu a legitimidade do Ministério Público para propor transação penal em ação penal de iniciativa privada, considerando-a um direito subjetivo do réu quando preenchidos os requisitos legais.
  • REsp 1705947: A composição dos danos civis homologada judicialmente acarreta a renúncia ao direito de queixa (art. 74, parágrafo único, da Lei nº 9.099/1995). Contudo, o STJ esclareceu que se a composição não abranger todos os danos, como os morais, a vítima pode buscar a reparação na esfera cível.

Ver também

Referências

  1. LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 10ª ed. Juspodivm, 2022.
  2. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 19ª ed. Saraiva, 2022.
  3. NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Processual Penal. 19ª ed. Forense, 2022.
  4. TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 17ª ed. Juspodivm, 2022.