RE 1.037.396/SP e RE 1.057.258/MG

DIREITO CONSTITUCIONAL – MARCO CIVIL DA INTERNET; PLATAFORMAS DIGITAIS; DEVER DE FISCALIZAÇÃO; DANOS DECORRENTES DE CONTEÚDO GERADO POR TERCEIROS; DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS; DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA; LIBERDADE DE EXPRESSÃO E MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO; VEDAÇÃO À CENSURA; PRINCÍPIO DA RESERVA DE JURISDIÇÃO

DIREITO CIVIL – RESPONSABILIDADE CIVIL; DIREITOS DA PERSONALIDADE; OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR

 

Responsabilidade de plataformas digitais por conteúdo de terceiros RE 1.037.396/SP (Tema 987 RG) e RE 1.057.258/MG (Tema 533 RGaudiotexto.png

 

ODS: 16

 

Audiência Pública: Parte 1             Parte 2          Parte 3          Transcrições

 

Teses fixadas:

Reconhecimento da inconstitucionalidade parcial e progressiva do art. 19 do MCI: 1. O art. 19 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), que exige ordem judicial específica para a responsabilização civil de provedor de aplicações de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, é parcialmente inconstitucional. Há um estado de omissão parcial que decorre do fato de que a regra geral do art. 19 não confere proteção suficiente a bens jurídicos constitucionais de alta relevância (proteção de direitos fundamentais e da democracia). Interpretação do art. 19 do MCI: 2. Enquanto não sobrevier nova legislação, o art. 19 do MCI deve ser interpretado de forma que os provedores de aplicação de internet estão sujeitos à responsabilização civil, ressalvada a aplicação das disposições específicas da legislação eleitoral e os atos normativos expedidos pelo TSE. 3. O provedor de aplicações de internet será responsabilizado civilmente, nos termos do art. 21 do MCI, pelos danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros em casos de crime ou atos ilícitos, sem prejuízo do dever de remoção do conteúdo. Aplica-se a mesma regra nos casos de contas denunciadas como inautênticas. 3.1. Nas hipóteses de crime contra a honra aplica-se o art. 19 do MCI, sem prejuízo da possibilidade de remoção por notificação extrajudicial. 3.2. Em se tratando de sucessivas replicações do fato ofensivo já reconhecido por decisão judicial, todos os provedores de redes sociais deverão remover as publicações com idênticos conteúdos, independentemente de novas decisões judiciais, a partir de notificação judicial ou extrajudicial. Presunção de responsabilidade: 4. Fica estabelecida a presunção de responsabilidade dos provedores em caso de conteúdos ilícitos quando se tratar de (a) anúncios e impulsionamentos pagos; ou (b) rede artificial de distribuição (chatbot ou robôs). Nestas hipóteses, a responsabilização poderá se dar independentemente de notificação. Os provedores ficarão excluídos de responsabilidade se comprovarem que atuaram diligentemente e em tempo razoável para tornar indisponível o conteúdo. Dever de cuidado em caso de circulação massiva de conteúdos ilícitos graves: 5. O provedor de aplicações de internet é responsável quando não promover a indisponibilização imediata de conteúdos que configurem as práticas de crimes graves previstas no seguinte rol taxativo: (a) condutas e atos antidemocráticos que se amoldem aos tipos previstos nos artigos 286, parágrafo único, 359-L, 359-M, 359-N, 359-P e 359-R do Código Penal; (b) crimes de terrorismo ou preparatórios de terrorismo, tipificados pela Lei nº 13.260/2016; (c) crimes de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação, nos termos do art. 122 do Código Penal; (d) incitação à discriminação em razão de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, sexualidade ou identidade de gênero (condutas homofóbicas e transfóbicas), passível de enquadramento nos arts. 20, 20-A, 20-B e 20-C da Lei nº 7.716, de 1989; (e) crimes praticados contra a mulher em razão da condição do sexo feminino, inclusive conteúdos que propagam ódio às mulheres (Lei nº 11.340/06; Lei nº 10.446/02; Lei nº 14.192/21; CP, art. 141, § 3º; art. 146-A; art. 147, § 1º; art. 147-A; e art. 147-B do CP); (f) crimes sexuais contra pessoas vulneráveis, pornografia infantil e crimes graves contra crianças e adolescentes, nos termos dos arts. 217-A, 218, 218-A, 218-B, 218-C, do Código Penal e dos arts. 240, 241-A, 241-C, 241-D do Estatuto da Criança e do Adolescente; g) tráfico de pessoas (CP, art. 149-A).  5.1 A responsabilidade dos provedores de aplicações de internet prevista neste item diz respeito à configuração de falha sistêmica. 5.2 Considera-se falha sistêmica, imputável ao provedor de aplicações de internet, deixar de adotar adequadas medidas de prevenção ou remoção dos conteúdos ilícitos anteriormente listados, configurando violação ao dever de atuar de forma responsável, transparente e cautelosa. 5.3. Consideram-se adequadas as medidas que, conforme o estado da técnica, forneçam os níveis mais elevados de segurança para o tipo de atividade desempenhada pelo provedor. 5.4. A existência de conteúdo ilícito de forma isolada, atomizada, não é, por si só, suficiente para ensejar a aplicação da responsabilidade civil do presente item. Contudo, nesta hipótese, incidirá o regime de responsabilidade previsto no art. 21 do MCI. 5.5. Nas hipóteses previstas neste item, o responsável pela publicação do conteúdo removido pelo provedor de aplicações de internet poderá requerer judicialmente o seu restabelecimento, mediante demonstração da ausência de ilicitude. Ainda que o conteúdo seja restaurado por ordem judicial, não haverá imposição de indenização ao provedor. Incidência do art. 19: 6. Aplica-se o art. 19 do MCI ao (a) provedor de serviços de e-mail; (b) provedor de aplicações cuja finalidade primordial seja a realização de reuniões fechadas por vídeo ou voz; (c) provedor de serviços de mensageria instantânea (também chamadas de provedores de serviços de mensageria privada), exclusivamente no que diz respeito às comunicações interpessoais, resguardadas pelo sigilo das comunicações (art. 5º, inciso XII, da CF/88). Marketplaces: 7. Os provedores de aplicações de internet que funcionarem como marketplaces respondem civilmente de acordo com o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90).

Deveres adicionais: 8. Os provedores de aplicações de internet deverão editar autorregulação que abranja, necessariamente, sistema de notificações, devido processo e relatórios anuais de transparência em relação a notificações extrajudiciais, anúncios e impulsionamentos. 9. Deverão, igualmente, disponibilizar a usuários e a não usuários canais específicos de atendimento, preferencialmente eletrônicos, que sejam acessíveis e amplamente divulgados nas respectivas plataformas de maneira permanente. 10. Tais regras deverão ser publicadas e revisadas periodicamente, de forma transparente e acessível ao público. 11. Os provedores de aplicações de internet com atuação no Brasil devem constituir e manter sede e representante no país, cuja identificação e informações para contato deverão ser disponibilizadas e estar facilmente acessíveis nos respectivos sítios. Essa representação deve conferir ao representante, necessariamente pessoa jurídica com sede no país, plenos poderes para (a) responder perante as esferas administrativa e judicial; (b) prestar às autoridades competentes informações relativas ao funcionamento do provedor, às regras e aos procedimentos utilizados para moderação de conteúdo e para gestão das reclamações pelos sistemas internos; aos relatórios de transparência, monitoramento e gestão dos riscos sistêmicos; às regras para o perfilamento de usuários (quando for o caso), a veiculação de publicidade e o impulsionamento remunerado de conteúdos; (c) cumprir as determinações judiciais; e (d) responder e cumprir eventuais penalizações, multas e afetações financeiras em que o representado incorrer, especialmente por descumprimento de obrigações legais e judiciais. Natureza da responsabilidade: 12. Não haverá responsabilidade objetiva na aplicação da tese aqui enunciada. Apelo ao legislador: 13. Apela-se ao Congresso Nacional para que seja elaborada legislação capaz de sanar as deficiências do atual regime quanto à proteção de direitos fundamentais. Modulação dos efeitos temporais: 14. Para preservar a segurança jurídica, ficam modulados os efeitos da presente decisão, que somente se aplicará prospectivamente, ressalvadas decisões transitadas em julgado.”

 

Resumo:

É parcialmente inconstitucional — por não assegurar proteção suficiente aos usuários, seus direitos fundamentais e à democracia, em especial devido à revolução no modelo de utilização da internet, com massiva utilização de redes sociais e plataformas digitais — o art. 19 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet - MCI), que condiciona a responsabilização civil de provedores de aplicações de internet ao descumprimento de ordem judicial específica para a remoção de conteúdo ilícito gerado por terceiros.

Isso porque, a regra geral prevista no referido dispositivo configura omissão parcial do legislador, ao não contemplar hipóteses em que a atuação diligente das plataformas é imprescindível para a tutela de bens jurídicos de alta relevância constitucional.

Nesse contexto, enquanto não sobrevier nova legislação, os provedores poderão ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes da veiculação de conteúdos ilícitos, inclusive sem ordem judicial, quando deixarem de adotar providências para cessar a violação mesmo após notificados de forma idônea. A responsabilização também se aplica aos casos de contas inautênticas ou falsas, bem como à replicação sucessiva de conteúdo ofensivo já declarado ilícito por decisão judicial, hipótese em que a remoção poderá ser exigida por simples notificação.

Com exceção dos provedores de aplicação classificados como “marketplaces” — que respondem civilmente de acordo com o regime previsto no Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) —, a responsabilidade civil das plataformas digitais será de natureza subjetiva, exigindo-se a demonstração de culpa ou dolo na conduta do provedor para que reste configurada.

Já nos casos de conteúdos impulsionados mediante pagamento ou disseminados por redes artificiais de distribuição (como “chatbots” ou robôs), presume-se a responsabilidade dos provedores pelo conhecimento da ilicitude, de modo que a exclusão de responsabilidade dependerá da comprovação de que o provedor atuou com diligência e em tempo razoável para tornar o conteúdo indisponível.

Ademais, as plataformas possuem o dever de cuidado diante da circulação de conteúdos que configurem crimes graves como: (i) terrorismo (Lei nº 13.260/2016); (ii) induzimento, incitação ou auxílio ao suicídio (CP/1940, art. 122); (iii) crimes sexuais contra pessoas vulneráveis, pornografia infantil e crimes graves contra crianças e adolescentes (CP/1940, arts. 217-A, 218, 218-A, 218-B, 218-C e ECA/1990, arts. 240, 241-A, 241-C e 241-D); (iv) tráfico de pessoas (CP/1940, art. 149-A); (v) discriminação ou preconceito (Lei nº 7.716/1989, arts. 20, 20-A, 20-B e 20-C); (vi) violência de gênero (Lei nº 11.340/06; Lei nº 10.446/02; Lei nº 14.192/21; e CP/1940, arts. 141, § 3º; art. 146-A; art. 147, § 1º; art. 147-A; e art. 147-B); e (vii) atos antidemocráticos (CP/1940, arts. 286, parágrafo único, 359-L, 359- M, 359-N, 359-P e 359-R).

Nesses casos, a responsabilização exige a demonstração de falha sistêmica, caracterizada pela omissão em adotar medidas adequadas de prevenção ou remoção, conforme os padrões técnicos disponíveis.

O art. 19 do MCI permanece aplicável, em sua integralidade, com relação aos serviços de e-mail, plataformas de reuniões fechadas e aplicativos de mensagens instantâneas, exclusivamente no que se refere às comunicações interpessoais, cujo sigilo é protegido por determinação constitucional (CF/1988, art. 5º, XII).

Além disso, os provedores de aplicações de internet devem manter sede e representação legal no Brasil, editar normas internas de autorregulação e disponibilizar canais acessíveis para denúncias e revisão de decisões de moderação.

Na espécie, no bojo do RE 1.037.396/SP, o Facebook foi responsabilizado por não remover, após notificação por sua própria ferramenta, um perfil falso criado em nome de uma pessoa que sequer possuía conta na rede social. A Corte reconheceu a negligência da plataforma, tanto por não adotar mecanismos minimamente seguros para aferir a autenticidade da identidade no momento da criação do perfil, quanto por não tomar providências adequadas diante da reclamação recebida, ao deixar de apurar sua plausibilidade e de remover o conteúdo inautêntico. Já no RE 1.057.258/MG, o Google foi acionado judicialmente após se recusar a remover uma comunidade ofensiva criada no “Orkut” contra uma professora, mesmo após solicitação da vítima. Nesse caso, a Corte afastou a responsabilidade da plataforma, por entender que, à época dos fatos — anteriores à edição do MCI — não havia imposição constitucional ou legal de dever de fiscalização prévia dos conteúdos publicados por terceiros, tampouco de remoção por iniciativa própria, especialmente quando relacionados à manifestação de opinião. Assim, caberia à parte ofendida buscar a responsabilização dos autores diretos da ofensa por meio da via judicial adequada.

Com base nesses e em outros entendimentos, o Plenário, em julgamento conjunto e por maioria: (i) ao apreciar o Tema 987 da repercussão geral, negou provimento ao recurso extraordinário para manter acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo que determinou a exclusão de um perfil falso da rede social Facebook e o pagamento de indenização por danos morais; (ii) ao apreciar o Tema 533 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário para reformar a decisão da Primeira Turma Recursal de Belo Horizonte/MG e afastar a condenação da empresa Google do Brasil ao pagamento de danos morais; (iii) declarou a inconstitucionalidade parcial e progressiva do art. 19 do MCI (1); (iv) formulou apelo ao legislador para que seja elaborada legislação capaz de sanar as deficiências do atual regime quanto à proteção de direitos fundamentais; (v) modulou os efeitos da decisão, conferindo-lhe eficácia prospectiva, com ressalva das decisões já transitadas em julgado; e, por fim, (iv) fixou as teses anteriormente citadas.

 

(1) Lei nº 12.965/2014: “Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.”

 

RE 1.037.396/SP, relator Ministro Dias Toffoli, julgamento finalizado em 26.06.2025 (quinta-feira)

RE 1.057.258/MG, relator Ministro Luiz Fux, julgamento finalizado em 26.06.2025 (quinta-feira)

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2025-08-17 02:45:24
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