Ação penal pública
AÇÃO PENAL PÚBLICA. É o instrumento processual pelo qual o Estado, por meio de seu órgão de acusação oficial, o Ministério Público, exerce o seu direito e dever de punir (jus puniendi), iniciando a persecução penal em juízo. É a modalidade de ação penal que constitui a regra geral no ordenamento jurídico brasileiro, aplicável à grande maioria dos crimes. Sua titularidade é exclusiva do Ministério Público e ela se subdivide em duas espécies: incondicionada, quando o MP pode agir de ofício, e condicionada, quando a atuação do MP depende de uma autorização da vítima ou de requisição do Ministro da Justiça.
Fundamentação legal
O fundamento da ação penal pública está na Constituição Federal, que define seu titular, sendo suas regras detalhadas no Código Penal e no Código de Processo Penal.
Constituição Federal
- Art. 129, I (Atribui privativamente ao Ministério Público a promoção da ação penal pública).
Código Penal
- Art. 100 (Estabelece a ação pública como regra e prevê suas duas espécies: incondicionada e condicionada).
Código de Processo Penal
- Art. 24 (Dispõe que a ação penal pública é promovida por denúncia do Ministério Público).
- Art. 42 (Consagra o princípio da indisponibilidade, que rege a ação penal pública após seu início).
Desenvolvimento teórico
A ação penal é dita "pública" porque o interesse em processar e punir o autor de uma infração penal é, primariamente, da sociedade, representada pelo Estado. O crime, nessa ótica, é uma ofensa que transcende a vítima e atinge a paz social.
Titularidade e princípios reitores
A titularidade para promover a ação penal pública é exclusiva do Ministério Público, que atua como dominus litis (senhor da lide). Sua atuação é pautada por princípios específicos:
Princípio da oficialidade
A persecução penal é conduzida por um órgão oficial do Estado.
Princípio da obrigatoriedade (ou legalidade)
O Ministério Público tem o dever de oferecer a denúncia sempre que houver justa causa (prova da materialidade e indícios de autoria), não podendo dispor da ação por critérios de conveniência ou oportunidade.
Princípio da indisponibilidade
Uma vez iniciada a ação com o oferecimento da denúncia, o Ministério Público não pode mais desistir do processo.
Princípio da indivisibilidade
A ação deve ser promovida contra todos os supostos autores do fato delituoso.
Espécies
A ação penal pública se divide em duas modalidades, a depender da autonomia do Ministério Público para agir.
Ação penal pública incondicionada
É a regra geral. A atuação do Ministério Público independe de qualquer condição ou manifestação de vontade da vítima ou de terceiros. Basta a notícia do crime e a existência de justa causa para que o promotor tenha o dever de denunciar.
Destina-se aos crimes mais graves, que causam maior perturbação social. Exemplos: Homicídio, latrocínio, roubo, corrupção, tráfico de drogas, tortura, estupro.
Ação penal pública condicionada
É uma exceção legal. Embora a titularidade da ação continue sendo do Ministério Público, sua atuação é subordinada a uma condição de procedibilidade. A mais comum é a representação do ofendido. Em casos mais raros, a condição é a requisição do Ministro da Justiça.
Destina-se a crimes nos quais o legislador considerou relevante o interesse particular da vítima, dando-lhe o poder de decidir sobre a conveniência de iniciar a persecução. Exemplos: Ameaça (Art. 147 do CP), estelionato (Art. 171, § 5º, do CP, como regra), perseguição (stalking) (Art. 147-A do CP).
Peça inaugural
Em ambas as modalidades de ação penal pública, o ato que dá início ao processo judicial é a denúncia, peça acusatória formal elaborada e assinada por um membro do Ministério Público.
Ação pública vs. ação privada
A distinção fundamental reside na titularidade. Na ação pública, o titular é o Ministério Público, que age em nome da sociedade. Na ação penal privada, o titular é a própria vítima (querelante), que age por meio de queixa-crime em nome próprio. A ação privada é a exceção máxima e só é admitida quando a lei expressamente o determinar.
Jurisprudência relevante
Titularidade da ação penal e poderes de investigação do Ministério Público
O Ministério Público é o titular exclusivo da ação penal pública, conforme o art. 129, I, da Constituição Federal. A jurisprudência do STF reafirma e detalha a extensão dos poderes do Parquet.
Poder de investigação do Ministério Público
O STF consolidou o entendimento de que o Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, investigações de natureza penal. Essa atribuição não é exclusiva da polícia judiciária.
- ADI 7170: Reafirmação da tese de repercussão geral (RE 593.727) que reconhece os poderes investigatórios do Ministério Público como decorrência implícita do monopólio da titularidade da ação penal.
Condições da ação penal pública
Para que a ação penal seja válida, é necessário o preenchimento de certas condições, como a justa causa. A ausência desses requisitos pode levar ao trancamento da ação.
- RE 593443: A decisão judicial que tranca a ação penal por falta de justa causa não viola o monopólio da iniciativa do Ministério Público nem a competência do Tribunal do Júri.
- HC 205000: O trancamento da ação penal é medida excepcional, mas cabível em casos de inépcia da denúncia, ausência de indícios de autoria ou falta de justa causa, como no caso de uma peça acusatória genérica que impede o pleno exercício do direito de defesa.
Ne bis in idem (proibição da dupla persecução)
Um dos princípios fundamentais é a proibição de que alguém seja processado duas vezes pelo mesmo fato.
- HC 182864: A absolvição em uma esfera judicial (no caso, Justiça Federal) com trânsito em julgado impede a continuidade de uma ação penal sobre os mesmos fatos em outra esfera (Justiça Militar), em respeito à vedação ao bis in idem.
Ação penal privada subsidiária da pública
A Constituição permite que o ofendido mova uma ação penal privada caso o Ministério Público não atue no prazo legal. O STF definiu os contornos desse direito.
Inércia do Ministério Público
O direito à queixa subsidiária surge quando, esgotado o prazo legal, o Ministério Público não oferece denúncia, não promove o arquivamento nem requisita diligências externas.
- ARE 859251: Em tese de repercussão geral, o STF fixou que o ajuizamento da ação privada pode ocorrer após o decurso do prazo legal, sendo irrelevantes diligências internas do MP. A conduta posterior do Ministério Público (como o oferecimento de denúncia tardia) não afasta o direito de queixa já constituído.
- Pet 10294: A simples manifestação do Ministério Público pelo arquivamento de uma investigação não configura inércia ou omissão que autorize a ação subsidiária.
Acordo de não persecução penal (ANPP)
O ANPP é um instrumento de justiça negocial que relativiza o princípio da obrigatoriedade da ação penal. O STJ tem se debruçado sobre os limites da discricionariedade do Ministério Público.
Dever-poder do Ministério Público
A proposta do ANPP não é uma mera faculdade, mas um dever-poder do Ministério Público, caso preenchidos os requisitos legais. A recusa deve ser fundamentada em elementos concretos, e não na gravidade abstrata do delito.
- REsp 2038947: A recusa em oferecer o ANPP com base em fundamentação inidônea (como a natureza hedionda do crime, sem analisar a possível aplicação de minorantes) é ilegal e pode levar à anulação do recebimento da denúncia por falta de interesse de agir.
Ver também
Referências
- LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 10ª ed. Juspodivm, 2022.
- LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 19ª ed. Saraiva, 2022.
- NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Processual Penal. 19ª ed. Forense, 2022.
- TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 17ª ed. Juspodivm, 2022.