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AP 2668

De Edpo Augusto Ferreira Macedo

DIREITO PENAL – CRIMES CONTRA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO; BEM JURÍDICO TUTELADO; TIPIFICAÇÃO; CONCURSO MATERIAL

“Trama golpista”: julgamento do Núcleo 1 (instigadores e autores intelectuais dos atos antidemocráticos) - AP 2.668/DF

Resumo

O STF, por meio de sua Primeira Turma — a partir de 18 de dezembro de 2023 (RISTF, art. 9º, I, l) — é competente para processar e julgar todas as investigações, inquéritos e ações penais referentes aos atos antidemocráticos, milícias digitais, tentativa de golpe e atentado contra os Poderes e instituições, inclusive aqueles ocorridos no dia 8 de janeiro de 2023.

A Emenda Regimental nº 59/2023, em síntese, transferiu parte da competência penal do Plenário para as Turmas e extinguiu a figura do revisor na ação penal originária (1). A partir de sua publicação, ressalvada a exceção do inciso I do art. 5º do Regimento Interno do STF, apenas as ações penais em andamento permaneceram no Plenário, ao passo que as Turmas passariam a ser competentes para todos os inquéritos e investigações em andamento.

Nesse contexto, a competência das Turmas passou a abranger a análise de eventuais e futuras denúncias oferecidas pela Procuradoria-Geral da República e, consequentemente, o processo e julgamento das ações penais instauradas após 18.12.2023 (2). Além disso, a prática das infrações penais imputadas a alguns denunciados guarda relação temporal com o exercício de cargos previstos na Constituição Federal (art. 102, I, b).

Configuram o crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (CP/1940, o art. 359-L) atos executórios que impedem ou restringem o exercício dos Poderes constitucionais com o intuito de manutenção de grupo político no poder. A norma jurídica visa proteger os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da criação de obstáculos ao pleno exercício.

Ao criminalizar a conduta de restringir o exercício dos poderes constitucionais, o referido tipo penal incide quando o chefe do Poder Executivo, no exercício de seu mandato, pratica condutas criminosas, por meio de violência ou grave ameaça, para atrapalhar, dificultar ou limitar o pleno exercício do Congresso Nacional ou do Poder Judiciário.

Configuram o crime de golpe de Estado (CP/1940, o art. 359-M) atos executórios voltados a tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, governo legitimamente constituído. A norma jurídica pretende proteger o governo eleito democraticamente, inclusive por meio de “intervenções militares”.

Incorre nesse delito a conduta de impedir a diplomação e posse do Presidente e Vice-Presidentes eleitos ou de retirá-los do poder após suas posses. A finalidade da norma é justamente evitar a derrubada, pela força ou coação, do governo constituído de modo legítimo, com o consequente afastamento dos seus ocupantes do regular exercício de suas funções.

Os crimes de “Abolição violenta do Estado Democrático de Direito” e de “Golpe de Estado” são tipos penais autônomos — com absoluta independência típica e que tutelam bens jurídicos distintos —, motivo pelo qual é viável o reconhecimento do concurso material (CP/1940, art. 69)

Na espécie, a imputação fática aponta as ofensas a cada bem jurídico tutelado pelo ordenamento jurídico, em momentos distintos e por meio de diversas condutas com desígnios autônomos. Em virtude da autonomia dos delitos e do direcionamento específico da conduta dos agentes para cada resultado ilícito pretendido, revela-se incabível a aplicação do princípio da consunção ou absorção (3)

Trata-se de ação penal que imputou aos diversos réus a prática dos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do estado de direito, golpe de estado, dano qualificado e deterioração do patrimônio tombado. O Ministério Público demonstrou que integrantes do Governo federal da época (entre eles o então Presidente e militares das Forças Armadas) tentaram impedir o pleno exercício dos Poderes constituídos e a posse do governo legitimamente eleito em outubro de 2022, utilizando-se de órgãos públicos para monitorar adversários políticos e atentando contra o Poder Judiciário, desacreditando a Justiça Eleitoral, o resultado das eleições de 2022 e a própria democracia.

Além disso, verificou-se a elaboração de uma minuta de decreto de golpe de Estado, com detalhamento de diversos “considerandos”, prevendo novas eleições e a prisão de autoridades públicas brasileiras, inclusive ministros do STF e o presidente do Senado Federal. Os atos antidemocráticos de 08.01.2023 evidenciaram o planejamento da organização criminosa na propagação da falsa narrativa de fraude eleitoral, o que gerou instabilidade social com a disseminação de ataques às instituições democráticas e manifestação a favor de intervenção militar.

Com base nesses e outros entendimentos, a Primeira Turma, por maioria, julgou procedente a ação penal para condenar os réus conforme detalhado na respectiva ata de julgamento.

(1) Emenda Regimental nº 59/2023: “Art. 1º Os dispositivos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal a seguir enumerados passam a vigorar com as seguintes alterações: ‘Art. 5º ........ I – nos crimes comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente da República, o Presidente do Senado Federal, o Presidente da Câmara dos Deputados, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e o Procurador-Geral da República, bem como apreciar pedidos de arquivamento por atipicidade de conduta; ........’ ‘Art. 9º ........ I – ........ l) nos crimes comuns, os Deputados e Senadores, ressalvada a competência do Plenário, bem como apreciar pedidos de arquivamento por atipicidade de conduta; m) nos crimes comuns e de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, da Constituição Federal, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente, bem como apreciar pedidos de arquivamento por atipicidade da conduta.’ Art. 2º Fica revogado o inciso III do artigo 23 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Art. 3º A presente Emenda Regimental não se aplica às ações penais originárias instauradas até a data de sua publicação. Art. 4º Esta Emenda Regimental entra em vigor na data de sua publicação”.

(2) Precedentes citados: Pet 12.100, AP 1.060, AP 1.502 e AP 1.183.

(3) CP/1940: “Concurso material Art. 69 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela. § 1º - Na hipótese deste artigo, quando ao agente tiver sido aplicada pena privativa de liberdade, não suspensa, por um dos crimes, para os demais será incabível a substituição de que trata o art. 44 deste Código. § 2º - Quando forem aplicadas penas restritivas de direitos, o condenado cumprirá simultaneamente as que forem compatíveis entre si e sucessivamente as demais. (...) Abolição violenta do Estado Democrático de Direito Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência. Golpe de Estado Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.”

AP 2.668/DF, relator Ministro Alexandre de Moraes, julgamento finalizado em 11.09.2025 (quinta-feira)